Mas, comecemos do princípio. Já disse de minha tentativa de fazer um poema épico e de haver escolhido uma lírica de Camões para sobre ela, em cima dela, intertextualmente a ela, escrever um poema que fosse meu e dele ao mesmo tempo. Nas duas quintilhas iniciais pareceu-me haver conseguido plenamente aquilo que queria.
Em Camões:
SÔBOLOS rios que vão
Por Babilónia me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças do Sião
E quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
De meus olhos foi manado:
E, tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
E em meu responsório:
SALOBROS rios que não
por babilonges mas sim
pelo meu dentro de mim
lavam lembranças de quão
de quanto de quase enfim
do lio que ali decorrente
de meus molhos já segados
pois tudo mal comparado
este papel do presente
é chão do tempo passado.
Com estes versos eu redimia, pelo menos em meu foro íntimo, o salobro de minha vergonha, e conseguia efeitos especiais como aquele babilonges em vez de Babilônia, o lio se sobrepondo ao rio e os molhos segados (com s) que sugeria por identidade homófona os olhos cegos ou cegados de um Sansão no cativeiro. Mas ao terminar esse primeiro momento impactual, dei-me conta de que para manter a mesma estrutura homofônica do poema camoniano eu seria levado à necessidade de elaborar um permanente discurso em trocadilhos que, ao fim de contas, podia ser um artificioso exercício, mas nunca um poema em que a emoção do poeta se transfundisse e muito menos se comunicasse com o leitor. Desisti do intento, mas não antes de perceber que havia conseguido um equivalente de grande modernidade para a Babel e o Sião do poema original: PAPEL E CHÃO — papel, talvez o ícone mais significativo de nossa civilização escrita, a folha branca terrível e desafiadora à espera que nela intervenha o risco mágico da criatividade; e chão, a origem, a terra natal, a infância, com a qual era impositivo um ajuste de contas, sem o que jamais me libertaria da província, do ser que fui e já não era, mas que continuava agarrado pelo umbigo mental ao berço, à pequenina terra onde, no princípio do século, chegou minha avó açoreana, vinda da ilha do Corvo, para se fixar naquele perdido lugarejo no interior de Minas Gerais que dava pelo temeroso nome de São Sebastião dos Aflitos.
A interrupção do projeto não implicava desistência dele, mas sua postergação para algum momento de aguda crise, aquele instante de angústia criativa com que sonham todos os poetas. E esse momento chegou mais de vinte anos depois, em 1980, quando residia em Lisboa, por ocasião das comemorações do 4º centenário da morte de Camões.
O tom familiar desta palestra me permite relatar as circunstâncias em que a erupção se deu. Viera residir em Portugal em 1973 e aqui permaneci por dez anos. Nos últimos seis, habitava o Palácio Fronteira, onde desfrutava a fidalga amizade de seu proprietário e a inviolável paz de seus jardins. Era funcionário do Governo brasileiro, à época representado por uma Ditadura militar, a essa altura já bastante branda, mas que fora de início truculenta e cruel em relação aos jovens idealistas que a ela se opunham e que cometeram o engano terrível de recorrer à luta armada para combatê-la. Tive amigos perseguidos, presos e exilados. Alguns que ainda passavam enormes dificuldades no estrangeiro. Embora eu fosse visceralmente apolítico, o simples fato de escrever exigia de mim uma definição, a tomada de uma posição, a que eu de maneira alguma me recusava, mas que nem por isso me obrigava ou impelia à utilização de meios ou recursos que sempre julgara inócuos ou quixotescos no combate ao cerceamento cultural que fora imposto aos brasileiros. Mas, no fundo de mim, conseguia identificar uma espécie de complexo de culpa, certamente injustificado, mas que lá estava assim mesmo, como a reclamar uma atitude qualquer, um gesto, um grito, uma aceno, uma negativa que fosse.
Um dia, era domingo, senti uma compulsão estranha de escrever. Em casa, tentei inutilmente, diante da máquina, resolver a tensão que me agitava o espírito. Mas a página branca teimava em permanecer imaculada, branca, ou, quando a enchia de palavras ao acaso, logo nelas percebia a fácies das enganosas adventícias, das passantes ocasionais, que não vieram para ficar.
Achei que em casa me faltasse concentração. Fui escrever no Banco do Brasil, onde trabalhava e onde encontrei, àquela hora tardia, o pobre do vigilante num estado mais de sonolência que vigília. Entrei, instalei-me diante de minha máquina datilográfica, uma IBM elétrica, de correção automática, e comecei a escrever. O desconfortável sentimento de que estava em cômoda situação enquanto alguns companheiros amargavam o exílio, fez-me logo pensar em Camões, na Babel e Sião, e daí, imediatamente, naquela tentativa de poema-palimpsesto que iniciara há mais de vinte anos antes e que nunca mais tentara retomar.
Impõe-se aqui um parêntese. Considero uma das maiores falácias da crítica literária o ensaio de Edgar Allan Poe denominado A Filosofia da Composição, em que ele afirma ter preparado, sistemática e conscientemente, todos os passos que o levaram à composição de O Corvo: como estabeleceu o refrão, o tipo apropriado de métrica que iria usar para obter determinado efeito, o esquema e a colocação das rimas, a extensão do poema, a configuração da estrofe, etc. O ensaio de Poe é uma obra de arte se tomado como uma análise a posteriori da estrutura do poema: ali tudo está devidamente explicado. Mas admitir a possibilidade de se montar um esquema PARA em seguida escrever o poema, é uma hipótese que se destrói por si mesma, porque, se Poe tivesse a chave da composição de espécimes poéticos da grandeza e qualidade de O Corvo, ele seria louco ou idiota se não a utilizasse com frequência em outras ocasiões, coisa que aparentemente não fez.
Quero com isto dizer que não tenho a menor intenção de apresentar um quadro em que deliberadamente me instalasse para escrever um poema e o tivesse escrito. Não. Sabia vagamente que estava para escrever um poema. Sabia vagamente que as emoções que se apossavam de mim naquele momento exsurgiam da sensação de um complexo de culpa que, por mais injustificado fosse, me pesava, me angustiava, me fazia mal às entranhas, e que era preciso vomitá-lo. A catarse poética. A evocação de Camões, cujo 4º centenário da morte se comemorava, proporcionou-me a fagulha mental deflagradora do poema. Lembrei-me de sua nostalgia de exilado, do imortal lamento tecido entre o tempo presente e o tempo passado, ente Babel e Sião, entre o sonho e a realidade, e me lembrei também do meu Papel & Chão, do papel que estava em branco impermeável ao advento do verso ou talvez à espera dele, e do chão de minha infância, daquele ser que havia, de certa forma, retornado à sua origem, à terra de sua avó, ao substrato da língua. Revi o menino franzino no interior de Minas Gerais e vi-o um dia, também um DOMINGO como aquele, em que ele tomou de uma vara de pescar e se encaminhou até a ponte bem próxima de casa sob o vigilante olhar materno. Nunca tínhamos antes pescado. Alguém nos ajudou, a mim e a meu irmão. Lançamos os anzóis à água e pouco depois um peixe irreal e reluzente aos meus olhos de criança (na realidade um simples lambari), fisgou a isca e eu o puxei no ar, a remexer, a luzir, a resplender a luz de sua nunca revelada escama. Era uma estrela que luzia na ponta de um anzol a debater-se com todos os movimentos mitológicos das ondinas e sereias. Louco de alegria, trouxe-o para terra; desajeitado retirei-o do anzol e deixei-o espadanar no bojo do embornal que havia levado para o caso. Naturalmente pensávamos encher o bornal de peixes e levá-los para casa, mas não me lembro se nas inúmeras outras tentativas conseguimos fisgar outros. Quando voltamos para casa, e quis mostar à minha mãe o novo ser que iria habitar conosco, e exibir os reflexos de sua calidoscópica beleza e plasticidade, descobri que o peixinho estava morto, imóvel, de olhos arregalados para o nunca no fundo do embornal. Eu matara o objeto de meu amor, amargava a primitiva culpa.
A ideia de uma culpa antiga, primeva, que se repercutia numa culpa atual — injustificada ou não — arrancou de dentro de mim, como eu arrancara das águas da infância o peixe da imaginação, estes primeiros versos, que vinham borbulhantes, logo após a leitura da quase esquecida glosa de Camões, como se navegasse nesse mesmo rio originário de toda criação poética, e fosse me deixando envolver por seus rodamoinhos, insistentemente seguindo-lhes o ritmo espiralante e recorrente, para enfim chegar às águas paradas do grande ovário em gestação.
E saíram-me estes versos:
[continua]
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