I
Não devo permitir que os ouvintes, aos quais suponho não faltar boa dose de paciência, incidam, desde logo, num equívoco: a palestra que estão prestes a ouvir não é um estudo sobre a obra de Camões, nem mesmo uma análise aprofundada do processo criativo em poesia, com a desmontagem das estruturas mais ou menos complexas que os críticos têm por hábito atribuir à incorpórea beleza de um poema. Minha intenção é muito menos acadêmica ou teórica do que isto. Pretendo, se agora, depois dessa advertência, ainda estiverem dispostos a me prestar ouvidos, relatar-lhes simplesmente as circunstâncias que suponho tenham gerado em mim um poema que, de certa forma guarda alguma relação linguística com a dicção poética de nosso grande Vate. Se, em seguida, elaborar algumas hipóteses ou sugerir possibilidades que expliquem o ato criativo, previno, desde já, que só o farei de maneira muito rudimentar, sem a terminologia um tanto absconsa da crítica literária nem o jargão definitivamente intransponível dos teorizadores estruturalistas.
Começo com uma história: há muitos anos, no Brasil, quando era ainda estudante de letras na Universidade do Rio de Janeiro, estive dominado pela idéia de escrever um poema épico. Verdadeiro absurdo, nada mais extemporâneo para o instante poético que estávamos vivendo, não só no Brasil, mas em todo o mundo, quando a poesia passava por um processo violento de condensação, de contração, com a predominância do poema curto e a preferência pelo hai-kai. No entanto, notava que a intenção não era só prerrogativa minha: vários outros poetas de nosso grupo do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que foi o núcleo gerador do movimento concretista brasileiro, também estavam propensos a julgar que o poema longo era o verdadeiro termômetro da efusão lírica, o desafio maior a ser vencido, e que os mosaicos fragmentários das estruturas concretas não passavam de manifestações temporárias de uma vanguarda que já nascia sem futuro, apesar de serem os seus teorizadores um grupo de jovens de excepcional formação humanística, conhecedores profundos de várias literaturas, inclusive orientais, talvez o grupo mais bem dotado de recursos culturais que já surgira no País.
Devo acrescentar que nosso conceito de poema épico não era o do sentido clássico de exaltação de feitos heróicos, mas o poema longo, de grande fôlego, versando sobre a condição humana, à maneira do que fizera T. S. Eliot em The Waste Land e Ezra Pound em The Cantos. Depois da Segunda Grande Guerra, o ponteiro das influências literárias no Brasil, que sempre estivera voltado para os valores europeus, nomeadamente os franceses, deslocou-se para os expoentes de língua inglesa, principalmente americanos, e passamos a nos pautar pela cartilha desses dois poetas, tornados figuras icônicas que todos devíamos imitar. Recordo-me de que nos lançamos numa febre de traduções porque Ezra Pound considerava a tradução o melhor caminho para o aprendizado poético. Também exercitávamos o estilo fazendo poemas à maneira de, procurando com isso dominar a técnica das várias escolas que nos antecederam, para um dia, quem sabe, pelo conhecimento aprofundado dos estilos, chegarmos a uma poética consistente.
Ainda guardo, dessa época, um soneto que fiz, dentro dos melhores padrões simbolistas dos brasileiros Cruz e Souza e Alphonsus de Guimarães, que se haviam longamente embebido do ideal verlainiano de la musique avant toute chose e do jogo das aliterações tão do agrado de Poe.
Permitam-me que o leia:
ROSAS
Rosas de róseos seios perfumosos,
Cristais de carne transbordando aromas,
A ávidos ventos entregai as pomas,
Vosso perfume suspirando em gozos.
E vós, ó brancas rosas, entre as ramas
Ao cílicio entregai-vos, silenciosas,
E no silêncio recolhei, ó rosas,
As vossas carnes das crestantes chamas.
Ó rosas rubras como as ânsias loucas,
Sois como corpos de ondulosas ancas
E purpurinas como as rubras bocas;
E vós, ó brancas rosas de alabastros,
São como as almas vossas carnes brancas,
Vosso pefume como a luz dos astros.
Como veem, a “imitação” procurava ir um pouco além de seus modelos, em imagens como “cristais de carne” e na extrapolação das correspondences baudelairianas (“perfume como luz”), além de introduzir recursos pós-simbolistas, como o da mudança ou inversão da vogal tônica do primeiro para o segundo quarteto. Curiosamente, esse estudo, feito há mais de quarenta anos, rebrotou em mim, num verdadeiro paroxismo, em 1992, quando, no poema “Gavota”, das Visitações de Alcipe, assim escrevi:
Um fino perfume percute
no lago o brilho dos sons
que tocam com os dedos
o gosto dos olhos
em que os cinco sentidos já não atendem a uma corresponência, mas se intercambiam em suas funções para formar uma espécie de supersentido em que todos eles atuam ao mesmo tempo e com todas as suas possibilidades latentes.
Leitor incansável dos clássicos, nos quais identificava as matrizes da língua, também me exercitava na utilização de uma linguagem arcaizante, ou pseudoarcaizante, para, por meio dela, obter novas maneiras de expressão:
SONETO ANTIGO
Senhora, amar-vos nessa indiferença,
Querer-vos na frieza em que vos hades,
É a só razão que me comanda e pensa
A crua pena das cruéis saudades.
E quanto mais vos tendes fria e infensa,
Quanto mais longe desse amor vos vades,
Maior paixão o peito meu condensa
Ardendo em vossas próprias frialdades.
Jamais penseis, Senhora, em vos renderdes.
Não permiti que as vossas pomas verdes
Em frutos podres a sazão transmude;
E que eu jamais também não me condene
De haver um dia concorrido infrene
Para o mosto da vossa senectude.
A utilização de formas talvez hipotéticas do verbo haver (hades) e do verbo ir (vades) e mais o emprego de pensar na acepção para nós, brasileiros, arcaica, de curar ferida, e de peregrinismos como sazão e infrene, conferem ao soneto um ar faisandé, mas ao mesmo tempo provocatório, pois fica evidente que, pela utilização do modelo clássico, o poeta na verdade está procurando desdizer o que afirma e quebrar com sua provocação a frieza inicial da Dama.
Todavia, como disse, esses poemas eram meros exercícios de estilo, ensaios em vários tipos de dicção, como o músico que se põe a tocar diversos instrumentos, antes de se decidir sobre aquele a que irá se dedicar a sério, a fim de se tornar um bom executante. Voltemos, por necessário, ao meu pretendido poema épico. A princípio, pensei fazer, à maneira de Pound, um make it new com um poema clássico: tomar, por exemplo, um soneto ou uma lírica de Camões e reescrevê-la numa linguagem inteiramente moderna, embora à feição de palimpsesto, em que o verso subjacente permanecesse facilmente decodificável, fosse pelo sentido ou pela voz (ou som) do novo verso. Foi assim que escolhi SÔBOLOS RIOS da lírica BABEL E SIÃO, um dos poemas camonianos que mais me marcaram, curiosamente porque quando o li pela primeira vez, entendi que estava escrito SALOBROS RIOS em lugar de SÔBOLOS. Só algum tempo depois, já na Faculdade, foi que me dei conta do engano e confesso que muito me envergonhei pelo fato de haver tomado aquela forma arcaica e espanholada de SOBRE OS RIOS por um triste e contemporâneo rio poluído.
Já muito cedo, aos doze ou treze anos, quando perpetrava meus versos quilométricos sem métrica, mas dotados de poderosas rimas que catava nos dicionários, eu escrevera um soneto duplo, ao gosto parnasiano, em que o tema é tratado num plano real no primeiro soneto e no plano ideal ou metafórico no segundo. Minha composição chamava-se “Tempestades Humanas” e descrevia o dilúvio no primeiro enfoque e um acesso de ira no subsequente. Como tivesse lido a descrição do Dilúvio no Velho Testamento, num livro quase tão velho quanto ele próprio, ainda na ortografia antiga, assumi que a palavra CÔVADO fosse paroxítona e a rimei com FADO ou MALFADADO ou outra qualquer palavra igualmente grandiloquente. Quando li o poema para meu pai, ele ficou na dúvida se me desengraçava ou não, e adotou a pior atitude que era a de dizer que estava em dúvida se o certo era CÔVADO ou COVADO e que o melhor seria arranjar outra rima. Fiquei inconsolável. Meu soneto só funcionava com aquela água do Dilúvio que já havia subido a DEZ COVADOS e qualquer tentativa de substituir o termo bíblico resultava imprópria. Decidi que meu pai estava errado e fui ler o soneto a um tio meu, versado em letras, também poeta, na esperança, na quase certeza de que ele me confirmaria a prosódia. Quando chegou à rima, o tio pôs-se a rir sem titubeios e ainda tripudiou sobre a minha ignorância, propondo-me usar, em vez de côvado, arratel, que mais tarde vim a saber tratar-se de um peso e não medida, que a palavra era de origem árabe e não latina e cuja pronúncia correta era arrátel e não arratel. O erro do tio ilustre serviu-me de consolo para as minhas silabadas infantis.
Se relato essa passagem pouco edificante de minha infância, é para dizer que a descoberta do SÔBOLOS foi para mim tão cruel quanto fora a admissão do CÔVADO, e para que se tenha presente o quanto a memória de infância permanece a atuar sobre a nossa mente de hoje numa espécie de círculo de emoções que se estratificam ao longo de nossas vivências. Pois reconheço,
da maneira mais clara e inquestionável, que o poema que escrevi em 1980, aqui em Lisboa, por ocasião do 4º centenário da morte de Camões, no qual consegui exteriorizar todo um processo emocional que me atormentava, é nada mais que o reflexo de uma velha angústia de meus tempos de menino, ou, para dizer numa frase é o ENCONTRO DO CÔVADO COM O SÔBOLOS.
[continua]
É extremamente tocante – para mim, pelo menos – esse relato de suas primeiras manifestações poéticas e de suas lutas com a erudição, Ivo, uma tendência que marcaria toda a sua vida. Um belo e refinadíssimo texto.