Em 1938, minha cidade-natal, que então se chamava Herval e era distrito de Viçosa, emancipou-se e teve o seu primeiro prefeito, Dr. Waldir Laperrière, nomeado pelo governo do Estado. Em 1943, passou a chamar-se Ervália, com a homologação promovida pelo Censo Demográfico daquele ano, que priorizou com esse nome a cidade do Rio Grande do Sul, que era mais antiga. Ao Dr. Waldir, que exerceu o mandato até 1944, sucederam vários outros prefeitos, todos nomeados pelo governo estadual, até que em janeiro de 1947 o cargo foi confiado a Edgard de Vasconcellos Barros, advogado e professor emérito da então Escola de Agronomia de Viçosa. Edgar era homem culto, escritor, jornalista, e logo fez amizade com meu pai, Ormindo Teixeira Barroso, que era o farmacêutico local.
Numa de suas visitas à farmácia, o então prefeito deu comigo catando milho na velha máquina Remington, em que passei a escrever meus versos. Um deles era O Pássaro Cego, inspirado numa epígrafe de Humberto de Campos, e que Edgard, meu primeiro grande incentivador, deu-me a alegria de publicar em 13.4.1947 na Gazeta de Viçosa, de que era colaborador permanente. Mais tarde, acabei por lhe confiar todo o caderno de versos intitulado Caixinha de Música, com meus poemas infantis, mas já metrificados, sobre o qual ele teve o carinho de escrever uma pequena nota, cujo recorte de jornal guardo até hoje. Transcrevo:
“Acabo de ler um punhado de versos interessantes do poeta Ivo Barroso, nosso distinto amigo, residente em Ervália, versos simples, de uma ingenuidade doce, que só se encontram nas almas cândidas e puras das crianças e dos poetas. Entre esses versos, veio a Rapsódia Hervalense, com o seu Andante, o Allegro, Adágio e Finale, numa linguagem tão simples, tão pura, tão aldeã que, por vezes, nos lembra as deliciosas composições de Paulo Setúbal, na Alma Cabocla. Versejando, com extrema simplicidade e facilidade ao mesmo tempo, Ivo Barroso sabe tirar das coisas comuns da vida aquela nota colorida e cheia de imprevistos, com que o poeta, só o poeta, sabe surpreender as coisas da vida. É com verdadeiro encantamento que lemos essa admirável Rapsódia, feita para glorificar sua terra e seu povo, sua igreja e seus monumentos. Com a maestria de um pintor rústico, à maneira de Milliet, Ivo Barroso pinta-nos, em contornos nítidos, a paisagem da terra natal, com sua fileira dupla de casas, espreguiçando-se pela planície, tendo ao centro o jardim em forma de leque, onde os namorados tecem ingenuamente os doces madrigais de amor. E é de ver o encanto com que todas essas coisas simples são pintadas na música lírica de sua rapsódia. Só mesmo um verdadeiro poeta é capaz de realizar esse prodígio, de aformosear as coisas simples e chãs, comuns em toda parte, àqueles que não têm os olhos da alma para ver e sentir os encantos secretos da vida. Até o interior das casas é pintado pelo poeta em sua suave rapsódia, onde não passa despercebida nem mesmo “a falsa eternidade das molduras” dos quadros que pendem das paredes.
Foi, portanto, um verdadeiro banho lustral para o meu espírito a leitura dessa Rapsódia Hervalense…
Mas, ao lado desses versos vieram outros também no mesmo tom de simplicidade, num caderno datilografado que ainda não tem nome. É a mesma poesia simples, natural, espontânea, graciosa da rapsódia. Aliás, o poeta é pouco mais que um adolescente. Daí a tonalidade rósea de seus poemas, que enchem de encanto a nossa vida e nos fazem acreditar, de novo, nas ingenuidades infantis dos “oito anos”. Os temas preferidos são: Papagaio de papel, Soldadinhos de chumbo, Caixinha de música, Barquinhos de papel, Realejo triste — coisas de crianças e de poetas. Tenho a impressão de que este caderno causará sucesso no dia em que vier a lume. E é preciso que, o poeta apresse a sua impressão, para delícia dos paladares finos dos verdadeiros estetas…
Edgar de Vasconcelos
Gazeta de Viçosa – maio de 1951
(Era a primeira vez que me chamavam de poeta, a sério. Meu pai me chamava ás vezes, brincando, de poeta galixo (ou galicho?), termo cujo significado nunca cheguei a penetrar. Edgard foi nosso prefeito somente por alguns meses (de janeiro a abril de 47) e, em 1954, quando já morávamos no Rio, fui visitá-lo, em Viçosa, no belo prédio colonial que ficava a cavaleiro da estação ferroviária. A sala da frente, seu escritório de advocacia, estava coberta de livros, e para marcar nossa visita, ele tirou da estante um livrinho, Versos Escolhidos e Epigramas, de Djalma Andrade, e nos ofereceu. No ano seguinte, recebeu um convite para lecionar nos Estados Unidos, na Universidade de Madison, e me tornei seu principal correspondente. De lá me mandou as Translations from the poetry of Rainer Maria Rilke, por Herter Norton, meu primeiro mergulho na obra do poeta de que Geir Campos já nos dera algumas amostras em 1953. A essa época o poeta da Caixinha já estava noivo e iria casar-se em 1956. De volta dos Estados Unidos, Edgard e Dona Irene, sua esposa, foram nossos padrinhos, tornando ainda mais estreita a amizade que nascera nos meus dias de criança.
Jubilando-se da Universidade Rural de Viçosa, de que era professor emérito, Edgard foi residir em Belo Horizonte, onde pude visitá-lo um par de vezes. Guardava sempre as características do homem interessado nos desenvolvimentos culturais, exprimindo-se com entusiasmo sobre autores e livros. Punha uma vitalidade transparente em sua maneira de exprimir-se, e tudo o que dizia soava como resultado de uma experiência vital ou de um sentimento profundo…
O governo Collor, com o nefando confisco da poupança, tornou a vida de Edgard insuportável. Teve que vender sua bela propriedade para atender a um forçado endividamento do filho, que teve seus haveres congelados. Nossa madrinha, Dª. Irene, de exuberante simpatia e carinhosa presença, adoeceu de desgosto e veio a falecer depois de um longo internamento. E Edgard, melancólico, seguiu-a logo após…
Caro Ivo
pesquisei por curiosidade, e as duas grafias existem
caliclio, sm. = galicho. Calice
http://www.archive.org/stream/dictionnairedupa00cerluoft/dictionnairedupa00cerluoft_djvu.txt
agora só Deus sabe o que seu pai queria dizer, pelo jeito poeta bentido?
abraços do amigo
Eric
Caro Ivo
galixo se refere a um tipo de galo bravo, deve ser uma expressão carinhosa, pois os torcedores do Galo chamam o seu time de galixo.
Procure na web e você acha, e como seu pai é mineiro, deve ter herdado esta expressão.
com apreço
Eric