Quando soube que eu andava traduzindo poemas de Rimbaud para publicá-los no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, o editor Ênio Silveira me intimou a traduzir Une Saison en Enfer para ser editada pela Civilização Brasileira entre abril e agosto de 1973, em comemoração ao centenário de publicação da obra. Terminando-a em fins de 1972, no mesmo ano da encomenda, levei-a ao Centro Dom Vital para submetê-la à apreciação do Dr. Alceu Amoroso Lima (1893-1983), que eu não conhecia mas sabia ser uma das maiores autoridades brasileiras em assuntos rimbaldianos. Dr. Alcêo, como era conhecido o influente pensador católico da época, igualmente famoso como crítico literário com o pseudônimo de Tristão de Athayde, era uma personalidade cultuada pelos jovens por sua corajosa atitude em defesa das liberdades democráticas, ameaçadas e coibidas pela ditadura militar que se instalara no país desde 1964. Ele me recebeu com grande simpatia e lemos juntos alguns trechos da tradução, cotejando-os com o original. Dr. Alceu, vez por outra, fazia pequenas anotações à margem e me pediu que deixasse os papéis com ele, pois queria examiná-los com mais vagar. À saída, para minha surpresa e evidente satisfação, vi-o tomar de um livro na estante, Voz de Minas, de sua autoria, e escrever na folha de rosto a seguinte dedicatória: Ao poeta! Ivo Barroso,! que conheci hoje, mas/ que, pelo que me leu de! sua extraordinária/ tradução de Rimbaud,/ posso dizer que me/ entusiasmou, no sentido/ platônico da palavra: Deus/ em nós!! Rio, Nov. 2-1972! Alceu Amoroso Lima. Dois dias depois, fui vê-lo novamente e recebi de volta, além dos originais da tradução, mais cinco folhas datilografadas com o título Data Vênia, que, para gáudio meu e do edi tor, nos foram oferecidas como prefácio.
A 2 de janeiro de 1973, antes de partir para a Europa, numa viagem que iria durar vinte anos, passei pela casa de Ênio Silveira já a caminho do aeroporto para lhe entregar os originais duramente emendados, pois não houvera tempo de redatilografá-los. Ficou assentado que eu reveria as provas em Portugal. No entanto, em vez de publicada por ocasião do centenário, a primeira edição só foi aparecer em 1977, sem que eu nunca soubesse os motivos da demora. No princípio daquele ano, o editor comunicou-me que o livro estava prestes a sair e que o Dr. Alceu havia sofrido um acidente, quando vinha de automóvel de Petrópolis para o Rio, a fim de votar a 15.11.76. Escrevi-lhe para Campinas, onde estava se recuperando, para lhe desejar melhoras e comunicar a boa notícia do breve aparecimento da edição. Dele recebi um cartão, com letra trêmula e difícil: Campinas, 17 janeiro 77/ Como gostei das notícias/ que me enviou. Sofri um acidente de que / estou lentamente me restabe le-/ cendo. Que o Rimbaud apareça/ quanto antes./ Alceu Amoroso Lima.
Nunca mais tive contato com o Dr. Alceu, nem soube, em 1983, quando de seu falecimento e quando foi lançada a 2ª edição, se ele tivera conhecimento dos motivos que determinaram o atraso da primeira. Após meu regresso, em 1992, estive várias vezes com o Ênio, chegamos a falar numa 3ª edição, mas nunca lhe ocorreu contar-me o motivo que o levara a adiar por quatro anos o lançamento da inicial.
Só muito recentemente o soube. Num artigo publicado no Jornal do Brasil de 14.03.1997, a propósito do livro 0 Instituto Nacional do Livro e as ditaduras – Academia Brasílica dos Rejeitados, de Ricardo Oiticica, encontrei a seguinte revelação, que passo a transcrever: “Aos 62 anos, funcionário apo sentado da Biblioteca Nacional, Roberto Menegaz aceitou falar ao JB sobre o período negro do INL. ‘Integrei as reuniões de escolha da publicação das obras. E fui obrigado a opinar sobre os livros’, diz. Menegaz sofreu pressões para dar pareceres “sensatos”, segundo padrões do regime da época: ‘Certa manhã, um grupo de policiais invadiu minha casa. Traziam uma ficha completa com meus empregos e diziam que eu participara de um assalto a banco no Rio Grande do Sul. Ora, eu nunca tinha ido lá’, conta Menegaz. Contra sua própria vontade, assinou parecer proibindo a publicação da tradução de Ivo Barroso para Uma Estadia no Inferno, do poeta Arthur Rimbaud, só porque o prefácio de Alceu Amoroso Lima continha um elogio a Ênio Silveira, dono da Editora Civilização Brasileira, célebre pela resistência cultural aos arbítrios políticos da época. “Alceu apresentava Ênio como figura injustiçada. Ora, a gente sabia que alguns textos não podiam ser aprovados, era o tempo de Médici, você acha que aprovariam aquilo?”
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